Ao conduzir um veículo – seja ele qual for – há 4 coisas fundamentais que temos que fazer se quisermos reduzir o risco a que nos expomos e a que expomos terceiros:
1. VER
2. SER VISTO
3. COMUNICAR
4. DAR ESPAÇO PARA ERROS
Isto não é uma receita, é apenas uma lista de ingredientes que não podem faltar.
A forma como os usamos varia de situação para situação. Estas regras não valem de muito para alguém que não conhece ou compreende as dinâmicas das colisões, e a psicologia humana – esse é que é o principal desafio em termos de aprendizagem.
Temos que esmiuçar cada uma destas regras:
VER: o quê, quem, quando, como, porquê?
SER VISTO:por quem, quando, como, porquê?
COMUNICAR:o quê, quando, como, a quem?
DAR ESPAÇO P/ ERROS:de quem, quais, como, porquê?
Para toda e qualquer situação, ao conduzir, temos que saber responder correctamente a estas questões. É isso que queremos [continuar a] fazer aqui no blog. Do arquivo actual:
A par destas regras básicas, importa compreender e aplicar ao ambiente rodoviário o conjunto de valores que vigoram noutras áreas da nossa sociedade e que se consubstanciam nestes 10 mandamentos sociais da estrada.
O risco associado a uma eventual queda ou colisão é uma função da probabilidade da mesma acontecer e, esta acontecendo, da gravidade das suas consequências. De forma simples:
Risco = [probabilidade de acontecer] x [gravidade das consequências]
Se eu tiver que saltar, ou algo me fizer cair, da varanda de um 5º andar as consequências serão letais. Mas eu posso adoptar medidas para reduzir a zero ou quase a probabilidade de eu me ver numa situação em que tenha que saltar, ou possa cair, de uma varanda do 5º andar, logo, o risco associado é residual. Ou então posso deixar de me preocupar com precauções para não me ver nessa situação e aceitar a possibilidade de vir a ter que saltar, ou cair, do 5º andar, mas antes colocar lá em baixo uma rede para me amparar a queda e reduzir de alguma forma as consequências da mesma. São ambas formas de reduzir o risco a que me exponho.
Aqui na escola, nas aulas de condução de bicicleta, treinamos os nossos alunos para reduzirem os riscos a que se expõem ao andar de bicicleta, focando-nos primordialmente na parte do “probabilidade de acontecer”, ou seja, desenvolvendo as competências necessárias para, antes de mais, evitar quedas e colisões, pois é a forma mais eficaz de reduzirmos o risco.
Contudo, as nossas chances podem ser melhoradas se além de adoptarmos comportamentos e estratégias que diminuem a probabilidade de uma queda ou colisão acontecer – primeira linha de defesa, adoptarmos também algumas medidas simples e acessíveis que minimizem as consequências de uma eventual queda ou colisão que não consigamos evitar – segunda linha de defesa.
Nas nossas aulas começamos por, logo no Nível 1, ensinar os alunos a assegurarem a todo o momento a sua “BOLHA DE SEGURANÇA“, um espaço em toda a sua volta que lhes permita:
1) tempo e espaço para passarem, oscilarem a sua trajectória, travarem ou se desviarem de obstáculos, sem colidirem com nada nem ninguém no processo, e
2) espaço desimpedido sobre o qual cair, caso uma queda seja inevitável.
Bolha de segurança, tipo isto, mas maior. 🙂
Sendo que o tamanho mínimo desta bolha é uma função da nossa velocidade (e/ou da de quem, ou daquilo, que por nós passa): quanto maior a velocidade, maior a bolha.
Enquanto condutora de um bicicleta (ou de qualquer outro veículo) eu posso:
1) escolher a rota que me oferece a maior bolha possível, e adequada à minha velocidade
2) se a rota preferida não assegurar a bolha de segurança mínima para a velocidade a que circulo, e não havendo rotas alternativas, adequar a minha velocidade ao tamanho possível da minha bolha.
E quanto mais pobres forem as minhas competências básicas de controlo da bicicleta e condução, maior terá que ser a minha bolha, e/ou mais devagar deverei circular, para compensar a minha inabilidade em identificar e detectar riscos, minimizá-los, e reagir com sucesso a eles.
Porque é que é importante reservar espaço para cair?
Porque cair no chão é diferente de cair sobre um lancil, um pilarete, um banco de jardim, etc. As consequências da queda serão provavelmente significativamente piores no segundo caso.
Isso leva-nos a uma terceira linha de defesa, que é: não transportar junto ao corpo objectos que, pela sua forma, volume, rigidez, e/ou localização, possam piorar as consequências de uma queda – como se transportássemos connosco um pilarete para depois cairmos sobre ele. 😉 Exemplos comuns para os condutores de bicicleta em contexto de transporte: chaves (ouch!), telemóveis, e cadeados:
What can go wrong? Bom, uma queda que poderia, de outra forma, não resultar em lesões de monta, pode resultar nisto, ou pior, se tivermos azar.
Por isso, é importante seleccionar criteriosamente os objectos que transportamos connosco junto ao corpo, seja em bolsos da roupa normal, seja pendurado de alguma forma, seja em bolsos dos jerseys, ou em mochilas. Manter a nossa bolha de segurança começa mesmo junto à pele.
Quando as pessoas ingressam na nossa escola no Nível 1.0 e lhes perguntamos quais os seus objectivos de curto e médio prazo, muitas vezes dizem-nos que lhes bastará concluir o Nível 1, de adaptação à bicicleta, pois só pretendem dar uns passeios, vão andar “apenas em ciclovias”, não pretendem ir para a estrada (algo que um principiante normalmente considera muito avançado e/ou perigoso).
Esta ideia de que andar de bicicleta em ciclovias exige menos competências e conhecimentos do que andar em estrada, e de que mesmo sem essas competências e conhecimentos é ainda assim mais seguro, é uma ideia extremamente comum. É, contudo, uma ideia totalmente errada, e muito perigosa (não me posso precaver de riscos que não detectei sequer, ou que não compreendo ainda).
Fonte: I Am Traffic
Por isso, na escola, esforçamo-nos por conseguir levar todos os alunos a completar pelo menos o Nível 2, de adaptação ao meio, do nosso programa de formação em condução de bicicleta, para assegurar que levam da escola as ferramentas básicas que os ajudarão a maximizar a sua própria segurança.
Uma ciclovia ou ciclofaixa portuguesa típica é totalmente o oposto de uma “autoestrada para bicicletas”. E este post no Facebook da ANSR, sobre a segurança das autoestradas, ajuda a perceber melhor isso:
É fácil, usando estes argumentos acima como ponto de partida, perceber os factores que tornam as ciclovias, e as ciclofaixas – principalmente as bidireccionais ou assim usadas – implementadas na malha urbana, mais perigosas do que as estradas.
A ciclovia urbana portuguesa é, por definição, a via mais perigosa no meio rodoviário. Porquê?
possui cruzamentos de nível, maioritariamente não-semaforizados, e geralmente com lancis
possui muitos atravessamentos de peões
possui apenas 1 via de trânsito em cada sentido, e extremamente estreitas, dificultando ou até inviabilizando ultrapassagens seguras
autoriza, e por vezes até incentiva ou obriga mesmo, o trânsito de peões
não possui entradas e saídas, ou estas são por via de degraus e sem ligação lógica e segura à estrada e/ou mesmo aos passeios
Além disto, poderemos ainda adicionar:
os cruzamentos são mais complexos, criando ângulos mortos
não têm margens de segurança
têm muitos pontos e curvas cegas
frequentemente são ladeadas – sem margem de segurança – por objectos capazes de causar ferimentos sérios em caso de queda: ex.: pilaretes, ou até mesmo capazes de provocar uma queda: lancis, delimitadores em betão, olhos de gato, etc
raramente são bem iluminadas
os pavimentos são muitas vezes irregulares, mal mantidos (buracos, folhas caídas, água, etc), escorregadios (ex.: calçada)
etc, etc
Claro que uma faixa de rodagem ou uma via de trânsito onde não circulem automóveis será mais agradável e mais confortável pela ausência de desse elemento ameaçador, ou pelo seu distanciamento. Mas uma coisa é conforto, outra é segurança, e devemos saber distinguir as duas coisas.
Algumas ciclovias, em determinadas circunstâncias, são alternativas úteis ou simplesmente apelativas. É importante saber reconhecer quando é que determinada ciclovia, em determinada deslocação, é a melhor opção para nós e quando é que não é. E é fundamental conhecer os riscos específicos das ciclovias e como os minimizar com a nossa condução, de forma a podermos tirar o melhor partido destas infraestruturas, sempre que nos convier, sem nos expormos desnecessariamente a riscos acrescidos.
Não basta aprendermos a andar de bicicleta, é fundamental aprendermos a conduzir!
No momento em que escrevo, este vídeo já foi partilhado mais de 700 vezes, isto em apenas 4 dias. Em muitas dessas partilhas as pessoas adicionaram comentários de indignação dirigidos ora ao condutor da carrinha ora aos condutores das bicicletas.
Que tal jogar ao jogo “descobre os erros”? 🙂
Atenção que ‘erro’ e ‘ilegalidade’ não são necessariamente sinónimos. Há erros ilegais, há erros legais, e há até não-erros ilegais…
O condutor da carrinha branca
Cometeu vários erros, todos ilegais, souberam identificá-los? São eles:
Efectuou uma ultrapassagem perigosa colocando em risco dezenas de utilizadores vulneráveis – infracção ao Art. 11.º n.º 3, coima de € 60 a € 300.
Efectuou a ultrapassagem de forma a daí ter resultado perigo e embaraço para o trânsito – infracção ao Art. 35.º, coima de € 120 a € 600.
Iniciou ultrapassagem de um conjunto de veículos sem ter certeza de que a poderia realizar sem perigo de colidir com um veículo que surgisse em sentido contrário (lomba + curva sem visibilidade + impossibilidade de retomar a direita sem perigo para quem lá transitava) – infracção ao Art. 38.º n.º 1, coima de € 120 a € 600
Ultrapassou um conjunto de velocípedes sem manter a distância lateral mínima de 1.5 m – infracção ao Art. 38.º n.º 2 alínea e), coima de € 120 a € 600. [E no final já nem sequer estava a respeitar a obrigatoriedade de ocupar a via adjacente, dado haver um carro em sentido contrário…]
Efectuou uma ultrapassagem triplamente proibida: numa lomba, numa curva de visibilidade reduzida, onde a largura da faixa de rodagem não era suficiente – infracção ao Art. 41.º, coima de € 120 a € 600.
Pisou e transpôs uma linha contínua – infracção ao Art. 35.º do RST, coima de 10 000$ a 50 000$.
De notar que o Código da Estrada não abre excepções para estas infracções, ou seja, a legislação não considera a ultrapassagem ou a circulação rodoviária acima de determinada velocidade, um direito inalienável dos condutores, nem um direito mais importante do que a segurança de todos os utentes das vias.
O condutor da carrinha não tinha mais legitimidade para fazer aquela ultrapassagem ilegal por ser um grupo de bicicletas do que se fosse um grupo de automóveis, pelo contrário, até, pois o CE agora reconhece mais claramente que peões e condutores de velocípedes estão mais expostos às consequências dos erros dos condutores de veículos automóveis do que os condutores e passageiros destes, exigindo por isso um maior nível de cuidado e responsabilidade da parte de quem opera estes veículos potencialmente perigosos ao pé de tais utentes [mais] vulneráveis.
E para quem traz tópicos como impostos, seguros e matrículas ao barulho para esta situação, importa compreender que nenhuma dessas coisas tornaria esta ultrapassagem menos ilegal e menos perigosa.
Os condutores das bicicletas
Cometeram um erro ilegal:
Circularam sem manter a distância de segurança adequada face aos ciclistas da frente – infracção ao Art. 18.º n.º 1, coima de € 30 a € 150.
De resto, e na situação concreta do vídeo, é basicamente isto.
Agora, vamos assumir que antes e depois do local mostrado no vídeo, a estrada continua a ser algo sinuosa e a não permitir a ultrapassagem segura de um pelotão deste tamanho, e o comportamento dos ciclistas se mantém.
Os eventuais erros legais (‘erros’ porque são más práticas de condução que geram situações de risco, mas ‘legais’ porque não são proibidos pelo CE) seriam:
Não se organizarem em 2 ou 3 sub-grupos com um espaçamento constante entre eles, e suficiente para acomodar um automóvel de cada vez, e assim criar condições para facilitar a ultrapassagem, progressiva, do grupo, em segurança.
Os eventuais erros ilegais seriam:
Não desfazerem os pares para o ciclista mais à esquerda se poder chegar mais para a direita em segurança, para facilitarem a ultrapassagem quando há efectivamente condições de segurança para tais ultrapassagens (a lei obriga aos condutores de automóveis a usar a via adjacente e a manter pelo menos 1.5 m de distância lateral do ciclista durante a ultrapassagem) – infracção ao Art. 39.º n.º 1, coima de € 60 a € 300, e ao Art. 90.º n.º 2, coima de € 30 a € 150.
Finalmente, o contraponto a alguns comentários e argumentos típicos das pessoas que partilharam este vídeo:
tinham que ir em fila indiana– 1) o CE permite a circulação paralelamente, na mesma via, 2) se o pelotão fosse em fila indiana o congestionamento teria o dobro ou o triplo do comprimento!
Fonte: Bicla no Porto
tinham que ir encostados à direita– tal não é boa ideia e o CE não obriga a fazê-lo, e ultrapassagem não seria mais fácil dado que é proibido ultrapassar uma bicicleta usando total ou parcialmente a via em que ela circula!
Fonte: Coimbra’ Pedal (derivado de Cycling Savvy)
tinham que manter 50 m de distância uns dos outros para facilitar as ultrapassagens porque são veículos em marcha lenta – o CE exclui os velocípedes dessa obrigatoriedade porque, presume-se, os velocípedes permitem aos condutores atrás manterem a visibilidade quase total da estrada à sua frente, e frequentemente mantêm velocidades bastante baixas (mais não seja em subidas), viabilizando mais facilmente a sua ultrapassagem segura. Tal excepção visará também acautelar a circulação em grupo, comum no caso dos ciclistas.
tinham que ter escolta policial, com batedores – tal só é obrigatório para actividades desportivas que afectem o trânsito normal, o que não é o caso (pelo vídeo), ou seja, neste caso aquilo é trânsito e é ainda assim “normal”, a escolta policial não faria necessariamente as ultrapassagens possíveis, simplesmente dissuadiria os outros condutores de fazerem asneiras como o da carrinha branca.
«aqueles ciclistas acham-se donos da estrada toda e aproveitam para se mostrarem “importantes”» – são tão donos quanto os outros e têm direito a usá-la da mesma forma, salvaguardando a sua segurança.
um dos meus favoritos: «Grandes amontoados de ciclistas que se acham no direito de ocupar toda a via e obrigar os outros a circularem atrás deles durante kilometros!!!» – não é isto que os condutores de automóveis fazem sem que ninguém pestaneje, apite ou resolva ultrapassar à força?… Se não forem 50 bicicletas mas sim 50 automóveis, 50 scooters, 50 quadriciclos / microcarros (ou papa-reformas, como lhes chamam), 50 camiões, tractores, carroças, etc, não seria muito pior?…
«Mas o condutor da carrinha só fez aquilo porque os condutores das bicicletas não lhe deixaram alternativa!»
Será? Vamos analisar então as alternativas aos dispôr do condutor da carrinha, na situação registada no vídeo:
Manter-se atrás do grupo e aguardaruma oportunidade segura para ultrapassar (podia ser dali a 30 segundos ou 30 minutos, não se sabe).
Arriscara sua vida, a dos seus passageiros, as dos condutores das bicicletas, e a dos condutores e passageiros dos veículos a circular em sentido contrário, fazendo uma ultrapassagem claramente perigosa(e ilegal).
Claro que o condutor da carrinha tinha alternativa. Simplesmente achou que era aceitável pôr terceiros em risco para ele próprio não perder tempo num congestionamento. Na sua cabeça, justificou isto com a ideia de que o seu tempo era mais importante do que o dos ciclistas, ou de que o seu uso da estrada era mais justificado, importante, urgente! que o dos ciclistas (o típico “eu estou a trabalhar, eles estão a passear!“), ou a de que a culpa era dos ciclistas por não estarem a deixá-lo passar, e tornou isso mais relevante do que a segurança de todas aquelas pessoas, uma atitude realmente lamentável…
Mesmo que os condutores das bicicletas estivessem a fazer tudo mal, em termos de condução e em termos de Código da Estrada (que não estavam, mas vamos assumir), o condutor da carrinha branca não tinha o direito de fazer igual ou pior lá por causa disso. Tinha o dever e a responsabilidade de não pôr aquelas pessoas em risco, por muito que elas e a situação o irritassem. É isso que diz claramente o Código da Estrada de 2014, e é isso que se espera que qualquer condutor legalmente habilitado para conduzir uma arma em potência seja sábio o suficiente para compreender e respeitar. Não nos cabe a nós sermos juízes e carrascos em julgamentos sumários, dos nossos concidadãos na rua…