Escola de Bicicleta

mobilidade & recreio

Os 10 mandamentos sociais da estrada (e não só)

Há uns tempos, enquanto preparava mais uma palestra sobre este tema da condução de bicicleta, ocorreu-me que as “4 regras de uma condução segura” não eram suficientes. Para compreender, discutir e orientar o nosso comportamento na estrada, precisamos de perceber, e definir, o conjunto de VALORES que orientam a nossa interacção com os outros utentes da via pública.

Valores são restrições múltiplas, heterárquicas, dinâmicas e legitimadoras sobre acções.

Encontrei esta definição aqui, e achei-a bastante clara.

As leis do Código da Estrada derivam, tendencialmente, de uma combinação de princípios técnicos, científicos, de segurança, ou seja, com vista a evitar colisões, e de valores sociais cuja matriz se pode encontrar na Constituição da República Portuguesa, e na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Estes são os 10 MANDAMENTOS SOCIAIS vigentes na nossa sociedade no geral, e que se aplicam igualmente nas interações no trânsito:

  1. o primeiro a chegar é o primeiro a usar
  2. a minha segurança é tão importante quanto a tua
  3. a minha conveniência é tão importante quanto a tua
  4. a minha segurança é mais importante do que a tua conveniência
  5. a tua segurança é mais importante do que a minha conveniência
  6. só eu decido se sacrifico a minha segurança pela minha conveniência
  7. só eu decido se sacrifico a minha conveniência pela tua
  8. podes esperar ou pedir que eu aumente a tua conveniência quando tal não reduza, de forma relevante, a minha – mas não mo podes exigir
  9. só os tribunais têm legitimidade para julgar e condenar pessoas, aos cidadãos é permitida apenas a auto-defesa
  10. o mais forte* é responsável pela segurança do mais fraco

* “forte” aqui significa aquele que detém o objecto ou o poder potencialmente mais letal, e “fraco” aquele que está [mais] exposto e vulnerável a esse perigo

Os conflitos / hostilidades do quotidiano surgem quando alguém desrespeita algum destes valores, de forma consciente ou inconsciente.

Compreender o significado e a aplicação destes valores ao contexto rodoviário é fundamental para 1) sermos melhores condutores e 2) lidarmos melhor com maus condutores.

A diferença entre ser visível e ser visto

Este artigo visa ajudar a compreender como aplicar as 4 regras de uma condução segura, descritas neste outro texto.

Visível significa passível de ser visto.  Ser visto implica ser visível, mas ser visível não implica ser visto.

Como SER VISTO?

  1. ser visível
  2. posicionarmo-nos onde é expectável que os outros* dirijam o seu olhar e atenção
  3. posicionarmo-nos fora dos ângulos mortos do(s) outro(s) veículo(s)

* os outros que sejam relevantes para o nosso trajecto

Exemplo A

Imaginem um cruzamento numa zona sem iluminação artificial (ou em que esta é fraca):

Se a situação acima acontecer de dia, o condutor da bicicleta cumpriu os 3 pontos necessários para ser visto.

Se a situação acontecer de noite e a bicicleta estiver equipada com luzes capazes e funcionais, o condutor também cumpriu os 3 pontos.

Se for de noite e a bicicleta não tiver luzes [eficazes] o condutor da bicicleta falha o ponto 1, e apesar de acautelar os restantes dois pontos, não vai ser visto [a tempo].

O condutor da bicicleta poderia ser visto, mas como não era visível, não será visto.

Exemplo B

Pensem na situação de um condutor de bicicleta a circular, ilegalmente, em contra-mão aproximando-se de um entroncamento (ou de uma saída de garagem, etc):

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A bicicleta até pode ter uma boa luz (ou seja, é visível), mas não vai ser vista [a tempo] porque está numa zona em que, para o condutor do carro, não é expectável virem veículos.

O olhar e atenção do condutor do carro estão focados na zona sombreada a verde, que é de onde é expectável surgirem veículos a quem possa ser necessário ceder passagem, ou confirmar se não vão colidir com ele.

O condutor da bicicleta circula/posicionou-se num “ângulo morto mental” do condutor do carro, e por isso dificilmente vai ser visto por ele. Outro exemplo – de um ‘gancho à direita’ – é analisado aqui.

Exemplo C

Os carros têm ângulos mortos, ou seja, zonas no seu exterior que o condutor não consegue ver – directamente ou com recurso a espelhos retrovisores, na sua posição normal de condução.

A situação abaixo mostra como um veículo pequeno como a bicicleta pode ficar oculto pelas barras laterais do carro por uns instantes – que podem ser fatais.

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Como as bicicletas são elementos minoritários e pouco frequentes, no ambiente rodoviário, o condutor do carro não vai lembrar-se e preocupar-se em mover a cabeça para garantir que não está um ciclista tapado pela barra – o condutor do carro está formatado para pensar em carros, cujo maior volume elimina quase totalmente o risco de esta situação ocorrar com um.

Os camiões têm ângulos mortos consideráveis porque são veículos volumosos e o condutor está bastante elevado face à estrada.

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A regra é:

Se tu não consegues ver os olhos do condutor, o condutor não te consegue ver a ti.

O cone de foco

Conduzir um carro é uma tarefa tremendamente exigente, e os seres humanos cometem erros. Principalmente nessas alturas queremos garantir que somos vistos tanto mais cedo quanto possível. A figura abaixo ilustra o conceito de “cone de foco” de um condutor de um automóvel (cliquem para aumentar).

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Daqui se depreende que, para garantir que somos vistos, devemos procurar posicionarmo-nos na via de trânsito (e não na berma, por exemplo), e idealmente mesmo no centro da via. Mas e se apanhamos atrás de nós condutores distraídos ou em excesso de velocidade?

Bom, aí é que é mesmo muito importante sermos vistos cedo e de forma clara! Nesses casos a área primária de foco e o “cone de vigilância” estreitam-se e alongam-se, pelo que os condutores focam a sua atenção mesmo no centro da sua via e lá ao fundo – e nós queremos que eles nos vejam lá.

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Cone de foco normal

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Conce de foco com o aumento da velocidade / distracção / limitação

Por isso é que, principalmente numa estrada nacional onde é fácil encontrar carros conduzidos em excesso de velocidade, é importantíssimo fazer isto:

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De notar que circular no centro garante maior contraste visual do que circular na berma, o que reduz a probabilidade de não sermos detectados a tempo (ou seja, aumenta o nosso factor “ser visível” além do “ser visto”).

Como é óbvio, circular de noite sem luzes adequadas torna ser visto uma missão complicada ou mesmo impossível, como demonstra o Exemplo A acima, e como é fácil de perceber olhando para a imagem anterior e imaginando que é de noite.

Recapitulando, para SERES VISTO:

  1. sê visível
  2. posiciona-te onde é expectável que os outros relevantes dirijam o seu olhar e atenção
  3. posiciona-te fora dos ângulos mortos do(s) outro(s) veículo(s)

As 4 regras de uma condução segura

Ao conduzir um veículo – seja ele qual for – há 4 coisas fundamentais que temos que fazer se quisermos reduzir o risco a que nos expomos e a que expomos terceiros:

1. VER

2. SER VISTO

3. COMUNICAR

4. DAR ESPAÇO PARA ERROS

Isto não é uma receita, é apenas uma lista de ingredientes que não podem faltar.

A forma como os usamos varia de situação para situação. Estas regras não valem de muito para alguém que não conhece ou compreende as dinâmicas das colisões, e a psicologia humana – esse é que é o principal desafio em termos de aprendizagem.

Temos que esmiuçar cada uma destas regras:

VER: o quê, quem, quando, como, porquê?

SER VISTO: por quem, quando, como, porquê?

COMUNICAR: o quê, quando, como, a quem?

DAR ESPAÇO P/ ERROS: de quem, quais, como, porquê?

Para toda e qualquer situação, ao conduzir, temos que saber responder correctamente a estas questões. É isso que queremos [continuar a] fazer aqui no blog. Do arquivo actual:

Artigos sobre VER:

Artigos sobre SER VISTO:

Artigos sobre COMUNICAR:

Artigos sobre DAR ESPAÇO PARA ERROS:

A par destas regras básicas, importa compreender e aplicar ao ambiente rodoviário o conjunto de valores que vigoram noutras áreas da nossa sociedade e que se consubstanciam nestes 10 mandamentos sociais da estrada.

Gancho à direita (‘right hook’)

Há dois tipos de “gancho à direita” (right hook, em inglês), uma das colisões carro-bicicleta mais comuns:

  1. quando um automobilista passa ou ultrapassa um ciclista e vira à direita
  2. quando um ciclista entra no ângulo morto de um automobilista que está a virar à direita

Como com a maior parte das colisões, esta também pode ser evitada por uma das partes independentemente do erro ou culpa legal da outra.

Um gancho à direita tem este aspecto:

Fonte: Bicycling.com

Fonte: Bicycling.com

O vídeo abaixo foca-se nas dinâmicas das ciclovias [ciclovias são vias de trânsito reservadas a velocípedes, marcadas na faixa de rodagem, como os corredores BUS mas quase sempre demasiado estreitas para caber um carro]. Os ganchos à direita podem acontecer em estradas sem ciclovias, com vias largas ou estreitas. A causa e a prevenção são as mesmas também nesses casos.

Agora um exemplo real. O vídeo abaixo mostra uma situação típica de [quase] colisão (neste caso a condutora da bicicleta até teve sorte, porque não chegou a colidir com o automóvel) entre um automóvel que vira à direita e uma bicicleta que, circulando encostada à direita da corrente de tráfego geral, segue em frente num entroncamento ou numa entrada particular.

Passem directamente para os 0:45 s no vídeo e observem bem:

Os ciclistas circulam na berma*, à direita da corrente de tráfego geral. Surge uma entrada/saída para um parque de estacionamento, os ciclistas pretendem continuar em frente mas à sua esquerda há um automóvel que, depois de colocar o pisca, vira devagar para entrar no parque de estacionamento e quase abalroa a ciclista da frente.

tem uns símbolos de bicicleta pintados no chão, sim, mas para o caso, é irrelevante: seja uma berma, uma ciclovia, ou um passeio, a mecânica da colisão é a mesma

Quem tem culpa?

O condutor do automóvel não se aproximou da berma antes de efectuar a manobra, como manda a lei, mas fez o pisca e fez a manobra bastante devagar. Ainda assim, e como referiu várias vezes uns instantes mais tarde, não viu a ciclista [antes de começar a virar]. E provavelmente não a viu porque esta estava no ângulo morto dos espelhos retrovisores do automóvel. Dado que não há sinalização nenhuma a alertar para eventual trânsito de bicicletas na berma da estrada, o condutor do automóvel não tinha nenhuma razão para se preocupar com esse ângulo morto, dado que este, tanto quanto ele saberia, dava para a berma, de onde não é suposto surgirem veículos…

A condutora da bicicleta circulava pela ciclovia, como manda a lei nos EUA, mas a ciclovia deixa de existir nos entroncamentos e entradas/saídas como a do vídeo, apesar de não haver sinalização vertical a validar as marcações rodoviárias… Ela quer seguir em frente e vê (ou, provavelmente não vê, porque não estava à procura desse sinal, perdida na ilusão de que na ciclovia não tem que se preocupar) um carro à sua esquerda a pôr o pisca, mas não abranda, assume, sem se certificar, que o condutor a viu e que lhe vai ceder passagem, e é aí que [quase] ocorre uma colisão – bastava o carro vir mais depressa…

Os técnicos e políticos que implementaram / autorizaram tal infraestrutura são os maiores culpados neste cenário, pois implementaram uma infraestrutura, cuja lei (nos EUA, em Portugal já não, desde 2014) obriga os ciclistas a usarem-a em vez das vias normais ao lado, que lhes oferece uma ilusão de segurança acrescida face às vias normais partilhadas com os automóveis, mas que os coloca em risco acrescido de abalroamento ao removê-los da corrente geral de tráfego e colocá-los nos ângulos mortos dos espelhos dos automóveis, e nos ângulos mortos mentais** dos condutores destes em todos os entroncamentos.

** para um condutor de automóvel activamente procurar ver o que se passa na berma ao seu lado, tem que estar formatado para tal, isso tem que fazer sentido – porque foi treinado para isso e porque a experiência lhe ensinou que é importante, que não o fazer é perigoso – não é o caso da situação do vídeo

Como evitar este tipo de colisão?

Automobilistas: sigam a lei, façam a curva no menor percurso possível, e para tal aproximem-se com antecedência da berma direita, mesmo que isso implique usar, parcialmente [porque a via é mais pequena do que o normal], a ciclovia, e no processo procurem garantir que não há ciclistas nos vossos ângulos mortos.

Ciclistas: saiam da ciclovia e ocupem o centro da via adjacente um pouco antes de chegarem ao entroncamento, só retornando à ciclovia depois de passarem, em segurança, a zona de conflito. Se não há ciclovia marcada, não circulem na berma como se ela fosse uma ciclovia destas, saiam do ângulo morto, coloquem-se bem no centro do campo de visão dos automobilistas, e vão mantendo uma noção do que se passa ao lado e atrás de vós enquanto atravessam a zona de conflito (ver artigo “Olhar: em frente, para trás, por cima do ombro“), para anteciparem os erros dos outros.