Escola de Bicicleta

mobilidade & recreio

Conhecer o Código da Estrada não é suficiente

Em 2006-2007 começámos a interessar-nos particularmente por responder a esta pergunta:

Como podemos melhorar a nossa experiência a usar a bicicleta para nos deslocarmos nas nossas estradas?”

Foi quando decidimos analisar o Código da Estrada, e o que este dizia sobre a circulação de bicicletas. Pensámos que colmatar a nossa ignorância nessa área poderia ajudar-nos a conduzir melhor, a tornar a experiência mais confortável, mais segura, mais eficiente.

Esse trabalho culminou na publicação em 2007 d’”O CÓDIGO DA ESTRADA E OS VELOCÍPEDES – Perguntas Frequentes, e levou a que nos envolvêssemos em esforços para corrigir e melhorar o CE. Quando, em 2013, o Governo se propôs a alterá-lo, fizémos lobbying, no âmbito da MUBi, para corrigir as propostas. Tive, nomeadamente, a oportunidade de ir à Assembleia da República explicar a necessidades dessas mesmas correcções.

Em 2014 entrou em vigor uma nova redacção do Código da Estrada, bastante melhorada para os condutores de bicicleta, mesmo que ainda não perfeita.

Ao mesmo tempo que desenvolvíamos esta análise do CE, descobrimos logo no início que simplesmente conhecê-lo não nos ensinava a conduzir bem uma bicicleta, principalmente num meio em que a maior parte dos condutores de automóvel também não sabe (ou não cumpre) o que o CE diz acerca de como interagir com condutores de bicicleta. Começámos, por isso, a estudar a melhor forma de conduzir. Foi isso que nos levou a procurar um curso de instrutores de condução de bicicleta, que fizémos em 2008, e começar a ensinar outros, na nossa escola.

Por um mero acaso, no outro dia fui dar a este vídeo antigo, de início de 2007, onde ilustrávamos o estacionamento ilegal sobre uma ciclovia na marina de Albufeira:

É o que se chama um “tesourinho deprimente“. 🙂 Mas extremamente útil. Ali está, bem documentado, o “antes”, do “antes e depois de aprender a conduzir”.

Hoje agiríamos de forma muito diferente daquela registada no vídeo acima. (E não perderíamos tempo a documentar o desrespeito de outros por uma infraestrutura que é, à partida, um desrespeito para quem nela circule – só aprendemos isso depois também.)

Saber conduzir envolve 4 competências chave:

  1. saber operar o veículo
  2. conhecer o protocolo de circulação oficial
  3. conhecer o protocolo de circulação não-oficial
  4. saber identificar e gerir riscos

O Código da Estrada é o protocolo oficial. A práxis é o protocolo não-oficial. Um sítio perfeito para perceber a diferença entre os dois é nas rotundas, onde estes dois protocolos estão muito desfazados.

Mais recentemente, temos tido a oportunidade de conversar com algumas instituições de ensino superior que se encontram a desenvolver candidaturas, ou a ponderar fazê-lo, ao projecto U-BIKE Portugal, um projecto para promover a introdução de bicicletas nos campi universitários, por meio de um sistema de empréstimos de longa duração. O regulamento deste projecto é bastante detalhado no que concerne às especificações das bicicletas a fornecer, contudo presta muito pouca atenção à parte das acções de comunicação e formação. Consequentemente, é comum as instituições pensarem inicialmente em lançar-se à candidatura prevendo pouco mais do que transmitir aos futuros utilizadores das bicicletas os principais artigos relevantes do Código da Estrada, pensando que isso será suficiente. Temo-nos esforçado por tentar desfazer esse equívoco a tempo.

Assegurar o ponto 2, acima, é importante mas não é suficiente. Para circular de bicicleta em meios com um nível de tráfego relevante, é preciso aprender a conduzir. Não o fazer leva a repetidas más experiências, quando não mesmo a quedas e colisões efectivas – tudo coisas que podem, naturalmente, levar as pessoas a desistir de usar a bicicleta em determinados percursos ou mesmo desistir de a usar de todo.

O sucesso do U-BIKE, em particular, mas de qualquer outra iniciativa de promoção de uma mobilidade mais sustentável centrada na bicicleta, depende das pessoas aderirem, não desistirem, e trocarem o máximo possível de quilómetros feitos de carro por quilómetros em bicicleta. Negligenciar a parte da motivação, capacitação e formação é um erro crasso que afectará o potencial deste projecto, como tem afectado inúmeras outras iniciativas.

E de notar que isto não tem só a ver com circular de bicicleta em ruas com automóveis. Mesmo em locais onde há muitas bicicletas e onde os automóveis são bastante segregados, não saber conduzir leva a colisões entre bicicletas e bicicletas e peões.

É fundamental disponibilizar às pessoas a oportunidade de melhorarem a sua compreensão do contexto rodoviário e a sua navegação no mesmo. Não basta distribuir informação sobre a legislação (disponível online aqui, aqui e aqui, por exemplo). E não bastam palestras, é fundamental haver sessões práticas complementares. Entretanto, enquanto quem o poderia fazer não o faz, resta aos utilizadores tomarem a iniciativa e instruírem-se como puderem, recorrendo a livros e sites estrangeiros, alguns recursos nacionais como o nosso blog e outros (ver Planeta Bicicultura) e/ou procurando as nossas aulas.

Ver mais, ver cedo

Este artigo visa ajudar a compreender como aplicar as 4 regras de uma condução segura, descritas neste outro texto.

Já aqui falámos da importância de OLHAR: em frente, para trás, por cima do ombro, e como e quando o fazer durante a condução. Ora, o propósito de olhar é VER, ver – atempadamente – tudo o que possa interferir com a nossa trajectória, para que nada nem ninguém nos apanhe totalmente de surpresa.

Ver um buraco, um carro ou um peão quando já estamos em cima deles é inútil. Temos que saber que elementos devemos conseguir – a todo o momento – ver, mas também qual a antecedência com que precisamos de os ver para termos tempo de ajustar a nossa posição, rota e/ou velocidade para evitar quedas e colisões. Isso varia com a nossa velocidade, com a bicicleta, a carga, e com todo o contexto à nossa volta (ângulos de visibilidade, volume e velocidade do restante tráfego, condições do pavimento, etc).

Queremos, por isso, ver mais [coisas relevantes], e ver cedo. Todo o condutor tem que, continuamente, fazer um ‘scan‘ ao ambiente à sua volta:

Traduzido/adaptado do livro "Urban Bikers Tips & Tricks", de Dave Glowacz

Traduzido/adaptado do livro “Urban Bikers Tips & Tricks”, de Dave Glowacz

 

A posição da bicicleta na via é algo que afecta cada uma d’As 4 regras de uma condução segura, a começar pela nossa capacidade de ver, pois a posição [lateral] na via determina o nosso ponto de vista e, logo, a nossa perspectiva.

A posição na via é, por isso, um dos factores mais críticos na condução de bicicleta, e deve ser adoptada de forma consciente e deliberada.

A capacidade de ver maior área e mais cedo é ilustrada nas imagens comparativas abaixo.

Com a perspectiva da imagem de baixo consegue ver-se algum do espaço entre os carros estacionados, mais cedo – se houver pessoas a surgir desses espaços,  para atravessar ou simplesmente para aceder aos automóveis pelo seu lado esquerdo, nós conseguimos vê-las a tempo. Se alguém se preparar para abrir a porta do carro do lado esquerdo – potencialmente interferindo na nossa trajectória, nós também conseguimos detectar isso mais cedo.

Posição desviada para a direita

Posição desviada para a direita

Posição centrada na via

Posição centrada na via

A mesma situação é ilustrada nos dois pares de imagens abaixo, que incluem dois factores agravantes: carrinhas altas, e uma passadeira.

Posição desviada para a direita

Posição desviada para a direita

Posição centrada na via

Posição centrada na via

Posição centrada na via

Posição centrada na via

Posição desviada para a direita

Posição desviada para a direita

O par de imagens abaixo mostra uma situação com duas variações também agravantes: carros estacionados em espinha (tapam mais as pessoas que surjam por entre eles), e uma rua curva (o que implica que, circulando desviados para a direita deixamos de ver uma parte da faixa de rodagem poucos metros à frente):

Posição desviada para a direita

Posição desviada para a direita

Posição centrada na via

Posição centrada na via

A outra vantagem, em termos de visibilidade, que circular mais centrado na via de trânsito oferece, é que nos permite ver o que se passa também à esquerda dos carros à frente, algo que não é possível quando circulamos desviados para a direita – em muitas situações, a melhor posição na via é a mesma de todos os outros condutores, mesmo de automóveis.

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É importante recordar: se nós não vemos os olhos dos outros condutores (directamente através de espelhos retrovisores), eles também não nos vêem, logo, falhar ver pode implicar também falhar ser visto. É assim que acontecem colisões como a da ilustração abaixo, chamada de “left cross” ou atravessamento à esquerda:

Fonte: Commute Orlando

Fonte: Commute Orlando

Um exemplo real pode ser analisado neste vídeo (é do Reino Unido, por isso temos que inverter a situação para a compreender no contexto português).

Mas não é só a posição lateral na via que importa, temos que garantir que deixamos espaço suficiente entre nós e o carro da frente para conseguirmos ver o chão que vamos pisar logo a seguir (quanto maior a velocidade, mais importante isto é). Deixar uma distância de segurança do veículo da frente é uma regra básica do Código da Estrada, e é particularmente importante para um veículo de duas rodas (há irregularidades no pavimento que são irrelevantes para um automóvel mas que podem mandar uma bicicleta ao chão).

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O condutor desta bicicleta não está a deixar uma distância de segurança adequada do carro à sua frente

À noite, as luzes não são opcionais. Há que não cair no erro de pensar que basta uma luz para se ser visto. A nossa capacidade de fazer um scan ao caminho fica comprometida se não tivermos uma boa luz dianteira na bicicleta, capaz de iluminar o chão (e obstáculos, incluindo peões que, ao contrário dos veículos, não estão equipados com luzes próprias…). 
Supernova E3 E-bike

A maior parte das quedas sofridas pelos ciclistas são a solo, e não ver o caminho é um factor importante na causa dessas quedas.

RESUMINDO:

» Faz continuamente um ‘scan’ ao que está à tua frente, mas também dos lados e até atrás, para identificares potenciais riscos a tempo de os evitares.

» Garante sempre que te posicionas de forma a maximizar a tua capacidade de ver obstáculos no pavimento, e peões e veículos em potencial rota de colisão contigo – lembra-te que quanto maior a tua velocidade, mais longe precisas de conseguir ver (porque chegas lá mais depressa, e porque se caíres a alta velocidade magoas-te mais).

» À noite, ou sempre que as condições climatéricas o exijam, usa uma boa luz dianteira, contínua, capaz de iluminar bem o chão, numa distância útil.

E, no processo, lembra-te sempre dos 10 mandamentos sociais da estrada.

Os 10 mandamentos sociais da estrada (e não só)

Há uns tempos, enquanto preparava mais uma palestra sobre este tema da condução de bicicleta, ocorreu-me que as “4 regras de uma condução segura” não eram suficientes. Para compreender, discutir e orientar o nosso comportamento na estrada, precisamos de perceber, e definir, o conjunto de VALORES que orientam a nossa interacção com os outros utentes da via pública.

Valores são restrições múltiplas, heterárquicas, dinâmicas e legitimadoras sobre acções.

Encontrei esta definição aqui, e achei-a bastante clara.

As leis do Código da Estrada derivam, tendencialmente, de uma combinação de princípios técnicos, científicos, de segurança, ou seja, com vista a evitar colisões, e de valores sociais cuja matriz se pode encontrar na Constituição da República Portuguesa, e na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Estes são os 10 MANDAMENTOS SOCIAIS vigentes na nossa sociedade no geral, e que se aplicam igualmente nas interações no trânsito:

  1. o primeiro a chegar é o primeiro a usar
  2. a minha segurança é tão importante quanto a tua
  3. a minha conveniência é tão importante quanto a tua
  4. a minha segurança é mais importante do que a tua conveniência
  5. a tua segurança é mais importante do que a minha conveniência
  6. só eu decido se sacrifico a minha segurança pela minha conveniência
  7. só eu decido se sacrifico a minha conveniência pela tua
  8. podes esperar ou pedir que eu aumente a tua conveniência quando tal não reduza, de forma relevante, a minha – mas não mo podes exigir
  9. só os tribunais têm legitimidade para julgar e condenar pessoas, aos cidadãos é permitida apenas a auto-defesa
  10. o mais forte* é responsável pela segurança do mais fraco

* “forte” aqui significa aquele que detém o objecto ou o poder potencialmente mais letal, e “fraco” aquele que está [mais] exposto e vulnerável a esse perigo

Os conflitos / hostilidades do quotidiano surgem quando alguém desrespeita algum destes valores, de forma consciente ou inconsciente.

Compreender o significado e a aplicação destes valores ao contexto rodoviário é fundamental para 1) sermos melhores condutores e 2) lidarmos melhor com maus condutores.

A diferença entre ser visível e ser visto

Este artigo visa ajudar a compreender como aplicar as 4 regras de uma condução segura, descritas neste outro texto.

Visível significa passível de ser visto.  Ser visto implica ser visível, mas ser visível não implica ser visto.

Como SER VISTO?

  1. ser visível
  2. posicionarmo-nos onde é expectável que os outros* dirijam o seu olhar e atenção
  3. posicionarmo-nos fora dos ângulos mortos do(s) outro(s) veículo(s)

* os outros que sejam relevantes para o nosso trajecto

Exemplo A

Imaginem um cruzamento numa zona sem iluminação artificial (ou em que esta é fraca):

Se a situação acima acontecer de dia, o condutor da bicicleta cumpriu os 3 pontos necessários para ser visto.

Se a situação acontecer de noite e a bicicleta estiver equipada com luzes capazes e funcionais, o condutor também cumpriu os 3 pontos.

Se for de noite e a bicicleta não tiver luzes [eficazes] o condutor da bicicleta falha o ponto 1, e apesar de acautelar os restantes dois pontos, não vai ser visto [a tempo].

O condutor da bicicleta poderia ser visto, mas como não era visível, não será visto.

Exemplo B

Pensem na situação de um condutor de bicicleta a circular, ilegalmente, em contra-mão aproximando-se de um entroncamento (ou de uma saída de garagem, etc):

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A bicicleta até pode ter uma boa luz (ou seja, é visível), mas não vai ser vista [a tempo] porque está numa zona em que, para o condutor do carro, não é expectável virem veículos.

O olhar e atenção do condutor do carro estão focados na zona sombreada a verde, que é de onde é expectável surgirem veículos a quem possa ser necessário ceder passagem, ou confirmar se não vão colidir com ele.

O condutor da bicicleta circula/posicionou-se num “ângulo morto mental” do condutor do carro, e por isso dificilmente vai ser visto por ele. Outro exemplo – de um ‘gancho à direita’ – é analisado aqui.

Exemplo C

Os carros têm ângulos mortos, ou seja, zonas no seu exterior que o condutor não consegue ver – directamente ou com recurso a espelhos retrovisores, na sua posição normal de condução.

A situação abaixo mostra como um veículo pequeno como a bicicleta pode ficar oculto pelas barras laterais do carro por uns instantes – que podem ser fatais.

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Como as bicicletas são elementos minoritários e pouco frequentes, no ambiente rodoviário, o condutor do carro não vai lembrar-se e preocupar-se em mover a cabeça para garantir que não está um ciclista tapado pela barra – o condutor do carro está formatado para pensar em carros, cujo maior volume elimina quase totalmente o risco de esta situação ocorrar com um.

Os camiões têm ângulos mortos consideráveis porque são veículos volumosos e o condutor está bastante elevado face à estrada.

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A regra é:

Se tu não consegues ver os olhos do condutor, o condutor não te consegue ver a ti.

O cone de foco

Conduzir um carro é uma tarefa tremendamente exigente, e os seres humanos cometem erros. Principalmente nessas alturas queremos garantir que somos vistos tanto mais cedo quanto possível. A figura abaixo ilustra o conceito de “cone de foco” de um condutor de um automóvel (cliquem para aumentar).

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Daqui se depreende que, para garantir que somos vistos, devemos procurar posicionarmo-nos na via de trânsito (e não na berma, por exemplo), e idealmente mesmo no centro da via. Mas e se apanhamos atrás de nós condutores distraídos ou em excesso de velocidade?

Bom, aí é que é mesmo muito importante sermos vistos cedo e de forma clara! Nesses casos a área primária de foco e o “cone de vigilância” estreitam-se e alongam-se, pelo que os condutores focam a sua atenção mesmo no centro da sua via e lá ao fundo – e nós queremos que eles nos vejam lá.

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Cone de foco normal

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Conce de foco com o aumento da velocidade / distracção / limitação

Por isso é que, principalmente numa estrada nacional onde é fácil encontrar carros conduzidos em excesso de velocidade, é importantíssimo fazer isto:

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De notar que circular no centro garante maior contraste visual do que circular na berma, o que reduz a probabilidade de não sermos detectados a tempo (ou seja, aumenta o nosso factor “ser visível” além do “ser visto”).

Como é óbvio, circular de noite sem luzes adequadas torna ser visto uma missão complicada ou mesmo impossível, como demonstra o Exemplo A acima, e como é fácil de perceber olhando para a imagem anterior e imaginando que é de noite.

Recapitulando, para SERES VISTO:

  1. sê visível
  2. posiciona-te onde é expectável que os outros relevantes dirijam o seu olhar e atenção
  3. posiciona-te fora dos ângulos mortos do(s) outro(s) veículo(s)