Escola de Bicicleta

mobilidade & recreio

Do respeito e da lei – o caso dos pelotões

Aqui há dias apareceu-me alguém a partilhar este vídeo num grupo no Facebook:

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No momento em que escrevo, este vídeo já foi partilhado mais de 700 vezes, isto em apenas 4 dias. Em muitas dessas partilhas as pessoas adicionaram comentários de indignação dirigidos ora ao condutor da carrinha ora aos condutores das bicicletas.

Que tal jogar ao jogo “descobre os erros”? 🙂

Atenção que ‘erro’ e ‘ilegalidade’ não são necessariamente sinónimos. Há erros ilegais, há erros legais, e há até não-erros ilegais…

O condutor da carrinha branca

Cometeu vários erros, todos ilegais, souberam identificá-los? São eles:

  • Efectuou uma ultrapassagem perigosa colocando em risco dezenas de utilizadores vulneráveis – infracção ao Art. 11.º n.º 3, coima de € 60 a € 300.
  • Efectuou a ultrapassagem de forma a daí ter resultado perigo e embaraço para o trânsito – infracção ao Art. 35.º, coima de € 120 a € 600.
  • Iniciou ultrapassagem de um conjunto de veículos sem ter certeza de que a poderia realizar sem perigo de colidir com um veículo que surgisse em sentido contrário (lomba + curva sem visibilidade + impossibilidade de retomar a direita sem perigo para quem lá transitava) – infracção ao Art. 38.º n.º 1, coima de € 120 a € 600
  • Ultrapassou um conjunto de velocípedes sem manter a distância lateral mínima de 1.5 m – infracção ao Art. 38.º n.º 2 alínea e), coima de € 120 a € 600. [E no final já nem sequer estava a respeitar a obrigatoriedade de ocupar a via adjacente, dado haver um carro em sentido contrário…]
  • Efectuou uma ultrapassagem triplamente proibida: numa lomba, numa curva de visibilidade reduzida, onde a largura da faixa de rodagem não era suficiente – infracção ao Art. 41.º, coima de € 120 a € 600.
  • Pisou e transpôs uma linha contínua – infracção ao Art. 35.º do RST, coima de 10 000$ a 50 000$.

De notar que o Código da Estrada não abre excepções para estas infracções, ou seja, a legislação não considera a ultrapassagem ou a circulação rodoviária acima de determinada velocidade, um direito inalienável dos condutores, nem um direito mais importante do que a segurança de todos os utentes das vias.

O condutor da carrinha não tinha mais legitimidade para fazer aquela ultrapassagem ilegal por ser um grupo de bicicletas do que se fosse um grupo de automóveis, pelo contrário, até, pois o CE agora reconhece mais claramente que peões e condutores de velocípedes estão mais expostos às consequências dos erros dos condutores de veículos automóveis do que os condutores e passageiros destes, exigindo por isso um maior nível de cuidado e responsabilidade da parte de quem opera estes veículos potencialmente perigosos ao pé de tais utentes [mais] vulneráveis.

Trânsito de bicicletas loule869494dd_400x225

E para quem traz tópicos como impostos, seguros e matrículas ao barulho para esta situação, importa compreender que nenhuma dessas coisas tornaria esta ultrapassagem menos ilegal e menos perigosa.

Os condutores das bicicletas

Cometeram um erro ilegal:

  • Circularam sem manter a distância de segurança adequada face aos ciclistas da frente – infracção ao Art. 18.º n.º 1, coima de € 30 a € 150.

De resto, e na situação concreta do vídeo, é basicamente isto.

Agora, vamos assumir que antes e depois do local mostrado no vídeo, a estrada continua a ser algo sinuosa e a não permitir a ultrapassagem segura de um pelotão deste tamanho, e o comportamento dos ciclistas se mantém.

Os eventuais erros legais (‘erros’ porque são más práticas de condução que geram situações de risco, mas ‘legais’ porque não são proibidos pelo CE) seriam:

  • Não se organizarem em 2 ou 3 sub-grupos com um espaçamento constante entre eles, e suficiente para acomodar um automóvel de cada vez, e assim criar condições para facilitar a ultrapassagem, progressiva, do grupo, em segurança.

Os eventuais erros ilegais seriam:

  • Não desfazerem os pares para o ciclista mais à esquerda se poder chegar mais para a direita em segurança, para facilitarem a ultrapassagem quando há efectivamente condições de segurança para tais ultrapassagens (a lei obriga aos condutores de automóveis a usar a via adjacente e a manter pelo menos 1.5 m de distância lateral do ciclista durante a ultrapassagem) – infracção ao Art. 39.º n.º 1, coima de € 60 a € 300, e ao Art. 90.º n.º 2, coima de € 30 a € 150.

Finalmente, o contraponto a alguns comentários e argumentos típicos das pessoas que partilharam este vídeo:

  • tinham que ir em fila indiana – 1) o CE permite a circulação paralelamente, na mesma via, 2) se o pelotão fosse em fila indiana o congestionamento teria o dobro ou o triplo do comprimento!
Fila indiana versus a par

Fonte: Bicla no Porto

  • tinham que ir encostados à direita – tal não é boa ideia e o CE não obriga a fazê-lo, e  ultrapassagem não seria mais fácil dado que é proibido ultrapassar uma bicicleta usando total ou parcialmente a via em que ela circula!
Ultrapassar ciclistas

Fonte: Coimbra’ Pedal (derivado de Cycling Savvy)

  • tinham que manter 50 m de distância uns dos outros para facilitar as ultrapassagens porque são veículos em marcha lenta – o CE exclui os velocípedes dessa obrigatoriedade porque, presume-se, os velocípedes permitem aos condutores atrás manterem a visibilidade quase total da estrada à sua frente, e frequentemente mantêm velocidades bastante baixas (mais não seja em subidas), viabilizando mais facilmente a sua ultrapassagem segura. Tal excepção visará também acautelar a circulação em grupo, comum no caso dos ciclistas.
  • tinham que ter escolta policial, com batedores – tal só é obrigatório para actividades desportivas que afectem o trânsito normal, o que não é o caso (pelo vídeo), ou seja, neste caso aquilo é trânsito e é ainda assim “normal”, a escolta policial não faria necessariamente as ultrapassagens possíveis, simplesmente dissuadiria os outros condutores de fazerem asneiras como o da carrinha branca.
  • «aqueles ciclistas acham-se donos da estrada toda e aproveitam para se mostrarem “importantes”» – são tão donos quanto os outros e têm direito a usá-la da mesma forma, salvaguardando a sua segurança.
  • um dos meus favoritos: «Grandes amontoados de ciclistas que se acham no direito de ocupar toda a via e obrigar os outros a circularem atrás deles durante kilometros!!!» – não é isto que os condutores de automóveis fazem sem que ninguém pestaneje, apite ou resolva ultrapassar à força?… Se não forem 50 bicicletas mas sim 50 automóveis, 50 scooters, 50 quadriciclos / microcarros (ou papa-reformas, como lhes chamam), 50 camiões, tractores, carroças, etc, não seria muito pior?…

«Mas o condutor da carrinha só fez aquilo porque os condutores das bicicletas não lhe deixaram alternativa!»

Será? Vamos analisar então as alternativas aos dispôr do condutor da carrinha, na situação registada no vídeo:

  1. Manter-se atrás do grupo e aguardar uma oportunidade segura para ultrapassar (podia ser dali a 30 segundos ou 30 minutos, não se sabe).
  2. Arriscar a sua vida, a dos seus passageiros, as dos condutores das bicicletas, e a dos condutores e passageiros dos veículos a circular em sentido contrário, fazendo uma ultrapassagem claramente perigosa(e ilegal).

Claro que o condutor da carrinha tinha alternativa. Simplesmente achou que era aceitável pôr terceiros em risco para ele próprio não perder tempo num congestionamento. Na sua cabeça, justificou isto com a ideia de que o seu tempo era mais importante do que o dos ciclistas, ou de que o seu uso da estrada era mais justificado, importante, urgente! que o dos ciclistas (o típico “eu estou a trabalhar, eles estão a passear!“), ou a de que a culpa era dos ciclistas por não estarem a deixá-lo passar, e tornou isso mais relevante do que a segurança de todas aquelas pessoas, uma atitude realmente lamentável…

Mesmo que os condutores das bicicletas estivessem a fazer tudo mal, em termos de condução e em termos de Código da Estrada (que não estavam, mas vamos assumir), o condutor da carrinha branca não tinha o direito de fazer igual ou pior lá por causa disso. Tinha o dever e a responsabilidade de não pôr aquelas pessoas em risco, por muito que elas e a situação o irritassem. É isso que diz claramente o Código da Estrada de 2014, e é isso que se espera que qualquer condutor legalmente habilitado para conduzir uma arma em potência seja sábio o suficiente para compreender e respeitar. Não nos cabe a nós sermos juízes e carrascos em julgamentos sumários, dos nossos concidadãos na rua…