“É como andar de bicicleta“, diz-se de algo que é fácil e que nunca se esquece.
Em 2012, em Viena, visitámos o Argus Bike Festival no âmbito do programa do encontro do projecto VOCA nessa cidade, em representação da MUBi. Uma das actividades disponíveis era a experimentação de uma série de invenções e adaptações velocipédicas, entre elas uma bicicleta com a direcção invertida (a roda dianteira vira para o lado oposto para o qual viramos o guiador), que tivémos a oportunidade de experimentar:
Ora, conduzir esta bicicleta revelou-se uma missão impossível nos poucos minutos em que tentámos. E agora podemos consolar-nos pois o Destin Sandlin levou a experiência às últimas consequências.
Ele, que aprendeu a andar de bicicleta [normal] aos 6 anos de idade, 25 anos depois levou 8 meses, treinando cerca de 5 min todos os dias, a conseguir conduzir uma bicicleta destas. Ou seja, precisou de cerca de 20 horas de treino, espalhadas ao longo de 8 meses, para simplesmente conseguir equilibrar-se nesta bicicleta, algo que um adulto médio consegue, numa bicicleta normal, aprender em apenas 2 horas se estiver suficientemente disposto a cair (atenção, estamos a falar apenas de equilíbrio básico a pedalar, e não do que é preciso para efectivamente saber andar de bicicleta como deve ser).
Esta experiência suscitou-me algumas questões que ficam por responder:
- é efectiva e objectivamente mais difícil aprender a andar nesta bicicleta do que numa normal? É menos contra-intuitiva?
- seria mais fácil aprender se a bicicleta invertida tivesse travões manuais (a que experimentámos em Viena também não tinha)?
- seria mais fácil / rápido aprender se o Destin não soubesse já andar de bicicleta normal?
- é possível chegar a um ponto onde se anda de forma competente e automatizada em ambas as bicicletas, saltando de uma para a outra sem soluços?
O pontos 2 e 3 interessam-me particularmente pelas ilações aplicáveis nas aulas de condução que dou na escola.
Neuroplasticidade
A capacidade do cérebro sofrer alterações sinápticas faz com que os circuitos neuronais sejam capazes de se transformarem e é esta característica única que está na base da aprendizagem e da memória. Este é um processo constante e contínuo visto que está impreterivelmente ligado a uma adaptação ao ambiente circundante e às novas experiências que vão surgindo.
Fonte: Wikipedia
O filho do Destin, de 5 anos de idade, andava de bicicleta (normal) há 3 anos, mais de metade da vida dele, e bastaram 2 semanas de treinos para conseguir andar na bicicleta invertida. Ou seja, 32 semanas para o pai, 2 semanas para o filho. Isto é um reflexo da maior neuroplasticidade das crianças – a arquitectura cerebral delas altera-se mais rápida e facilmente durante as suas aprendizagens.
Por outro lado, o que o cérebro do Destin tem a menos em plasticidade poderá ter a mais em estabilidade dos circuitos neuronais, que é o tradeoff que acontece à medida que crescemos e envelhecemos. Isso significa que não só é mais lento a aprender algo novo como é mais lento a “desaprender” algo antigo – “nunca esquecemos como se anda de bicicleta“.
Memória muscular
A aprendizagem motora utiliza memória não-declarativa (adquirida pela prática). Assim para aprender uma actividade motora é necessário treinar inúmeras vezes e de diversas maneiras determinada acção para que esta se fixe. Contudo, quando finalmente se fixa, nomeadamente na idade adulta, já não se esquece, fica na nossa “memória muscular”.
Mas se aprendemos a andar de bicicleta quando tínhamos 6 ou 8 anos, andámos umas vezes, e depois nunca mais até acordarmos um dia aos 30, 40 ou 50 anos e resolvermos tentar de novo, podemos descobrir que afinal já não sabemos. Podemos sentir que “desaprendemos”. Pode ser apenas que a aprendizagem não ficou consolidada na altura, ou que aquilo que temos na nossa memória muscular está desacertada com a nossa nova realidade corporal: estamos mais altos, mais pesados, etc. Seja como for, reaprender é sempre mais rápido que aprender.
Conclusões
Esta experiência do Destin demonstra algumas verdades importantes que já tínhamos tido oportunidade de observar:
- em média, aprender a andar de bicicleta (não a conduzi-la, atenção) é mais fácil e rápido para uma criança do que para um adulto
- um adulto pode facilmente aprender a andar de bicicleta, até uma com direcção invertida :-), basta que invista o tempo necessário
- desaprender algo é possível, sim, mas é difícil e moroso, e quanto mais consolidada estiver essa aprendizagem que pretendemos desfazer para construir outra, pior – por isso é que é muito mais difícil e leva muito mais tempo a ensinar crianças a andar de bicicleta quando estas andaram com rodinhas de apoio do que quando simplesmente nunca andaram de bicicleta – não ponham os vossos filhos a andar de bicicleta com rodinhas, por favor; dependendo da idade e da criança, invistam numa bicicleta de aprendizagem de boa qualidade e/ou invistam em aulas (bastam 4 a 8 horas para os miúdos ficarem quase uns pros), ou preparem-se adequadamente para a ensinarem (bem) vocês mesmos (vendo isto, por exemplo)
Quando aprendemos uma actividade motora nova, estamos literalmente a alterar o nosso cérebro, estamos a criar novos caminhos neuronais, novas ligações – claro que vai custar! É preciso insistir nos exercícios, praticar regularmente e dormir bem entre aulas. Mas vale a pena, aprender uma nova actividade motora mantém a saúde do nosso cérebro, e depois realizar essa mesma actividade física também beneficia o cérebro, é só vantagens. 🙂