É comum ver condutores de bicicleta a fazer às pessoas a pé o que se queixam que os condutores de automóveis lhes fazem a eles: razias, apitadelas, ultrapassagens perigosas “para lhes ensinar uma lição“, etc. Fazem-no pelas mesmas razões, ignorância, negligência, sobranceria.
O risco a que expõem os peões é menor do que aquele que os condutores de automóveis os expõem a eles, claro, mas ainda assim não é, de todo, um risco desprezável. Há efectivamente pessoas atropeladas por condutores de bicicletas. Daí podem resultar lesões variadas, e até a morte. E o próprio condutor da bicicleta também arrisca magoar-se, claro (pelo que é o primeiro interessado em correr riscos desnecessários…).
Na nossa escola ensinamos várias coisas fundamentais, entre elas a avaliação e redução de riscos, a cortesia, e a empatia. Tratar os outros como gostaríamos de ser tratados.
Os peões e os ciclistas são os elementos mais desprezados nos nossos espaços públicos, e as políticas públicas que têm havido e a forma como são desenhadas as vias públicas têm aumentado a fricção entre ciclistas (que fogem das estradas acreditando, erroneamente, que estão mais seguros nos passeios e ciclovias) e peões. Não podemos tolerar tal coisa. Os condutores de bicicletas e os peões devem misturar-se o mínimo possível, só em situações excepcionais e bem desenhadas, para evitar conflitos e reduzir riscos.
Os peões estão hierarquicamente acima dos ciclistas (pela universalidade dessa condição, pela maior vulnerabilidade, e pela ausência de ameaça aos outros utentes), estes últimos têm a responsabilidade de não colocar os primeiros em risco, mesmo quando estes adoptam comportamentos perigosos ou mesmo ilegais (podem ler uma introdução ao conceito de Responsabilidade Objectiva aqui).
A pensar nisto, a MUBi publicou um conjunto de 7 regras para respeito para com os peões, e o Luís Escudeiro divulgou-os em forma de podcast na Rádio Estrada Viva.
Antes de mais, a regra 3 contradiz o código da estrada. "Os condutores de velocípedes devem transitar pelo lado direito da via de trânsito, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes" (Artigo 90.º, 3). Eu gostaria que o código dissesse algo como o que está na regra 3. Acontece que só numa interpretação estranha de 'próximo' é que "próximo do meio da via" não seria diferente de "lado direito da via". Será, contudo, conveniente incentivar os ciclistas a desrespeitarem o código neste ponto?
Quanto ao resto das regras, julgo que o casos interessantes a discutir são os dos peões nas ciclovias. Nos outros, quando os peões são colocados em risco aceito que os ciclistas estão a agir mais ou menos como os automobilistas quando os colocam em risco. Digo mais ou menos porque parece-me que os ciclistas agem ainda pior que os automobilistas quando colocam os peões em risco nos passeios. Os ciclistas (adultos) e peões não podem partilhar passeios. Nesses casos os ciclistas estão a colocar em risco os peões sem terem sequer o direito de usar os passeios para circularem. Mas os automobilistas têm o direito de usarem as estradas.
Portanto, pela mesma razão, as "razias, apitadelas, ultrapassagens perigosas" a peões nas ciclovias são suficientemente diferentes da maior parte dos casos em que os automóveis fazem as mesmas coisas aos ciclistas. Quando os peões estão a circular em ciclovias não partilhadas e um ciclista lhes faz uma razia, o peão está interferir no direito do ciclista em circular em tal via. Ao contrário do que o artigo parece subentender, o caso análogo para ciclistas e automobilistas seria estes fazerem razias aos primeiros numa auto-estrada ou qualquer outro tipo de via em que o trânsito de velocípedes seja proibido. É claro que fazer razias não é solução, nem num caso nem no outro.
Mas, pelo menos em Lisboa, a minha modesta experiência revela que falar com os peões também não é solução. Aliás, em alguns casos isso revelou-se também fisicamente perigoso, como um acidente. Com a diferença que o acidente seria sempre isso mesmo, enquanto que a violência verbal ou mesmo física não seria acidental. De qualquer forma, não se pode simplesmente descontar o incómodo que um ciclista tem por ter de abrandar, parar, falar, etc. porque os peões não cumprem o código.
A solução é as pessoas estarem suficientemente informadas, serem educadas para respeitar os direitos dos outros e serem punidas quando isto não acontece (existe coima prevista para a circulação de peões em vias exclusivas a velocípedes quando aqueles têm passeios, mas será que o ciclista seria levado a sério se apresentasse queixa?). Mas, obviamente, não é sobre o ciclista que deve cair o maior esforço de solução, até porque a punição não pode ser feita por ele. Enquanto as coisas não mudarem pela responsabilidade de quem tem de informar, educar e punir, e quando a situação é a circulação ilegal de peões na ciclovia, para se garantir a segurança de todos é o ciclista que fica prejudicado, pois tem de abandonar alguns dos seus direitos porque os peões não cumprem as regras.
Olá,
A regra 3 não contradiz o CE. A não ser que esteja a intrepretar mal o significado de via, confundindo-a com “faixa”. A regra 3 diz que o ciclista deve circular em posição primária, ou seja, sensivelmente a meio da sua via de trânsito, ou pouco mais à direita desse meio, se quisermos cumprir o CE à letra (o que é difícil, pois não há marcas rodoviárias de “meio da via”…).
Quanto ao resto do seu texto, seja em que contexto for, ninguém tem legitimidade ou direito de punir as infracções de terceiros, é para isso que temos um sistema de Justiça. Ninguém deve sentir-se no direito de usar o veículo que conduz (ou o seu próprio corpo, no caso dos peões) como arma de arremesso para “ensinar uma lição” aos outros utentes das vias, cidadãos, seres humanos. Até porque, muitas vezes, essas pessoas não sabem a lição toda, só pensam que sabem.
A condição de peão é universal, uma pessoa a pé tem o direito a andar distraída e a não saber o Código da Estrada sem que corra o risco de morrer atropelada por um veículo, seja um carro, uma mota ou um velocípede.
Se há peões na ciclovia e nós queremos usá-la ou não temos alternativa a ela, devemos abrandar e dar espaço, e se necessário, abrandar até à velocidade dos peões em causa e dizer “Desculpe, dá-me licença, por favor? Muito obrigado. Tenha um bom dia.” O nosso direito a circular, e a circular sem interrupções, vem depois do direito dos outros à vida e à saúde.
De resto, informar e educar é justamente o que tentamos fazer na nossa escola e neste canto da web.
Obrigada pelo seu comentário.
Cara Ana,
O CE não diz que o ciclista deve circular “sensivelmente a meio da sua via de trânsito, ou pouco mais à direita desse meio”, mas sim “pelo lado direito da via de trânsito”. Haver ou não marcas a meio de cada via não impede os condutores de tentarem cumprir o que está legislado. O meu ponto é que afirmar “que o ciclista deve circular em posição primária” é contraditório com a orientação do CE.
Quanto ao resto, estamos de acordo que “Ninguém deve sentir-se no direito de usar o veículo que conduz (ou o seu próprio corpo, no caso dos peões) como arma de arremesso para “ensinar uma lição” aos outros utentes das vias, cidadãos, seres humanos”. No entanto, a minha crítica foi essencialmente à analogia entre o desrespeito dos automobilistas para os ciclistas, por um lado, e o desrespeito dos ciclistas para com os peões, por outro. Os casos não são análogos porque os automobilistas desrespeitam os ciclistas em vias partilhas por ambos, ao passo que os ciclistas desrespeitam os peões em vias exclusivas aos primeiros.
Os ciclistas devem ter cuidado para não magoarem os peões, claro. Mas se há regras para a circulação de peões, elas têm de ser feitas cumprir. Nem todo o prejuízo é um dano na saúde. O incumprimento destas regras também causa danos. Nomeadamente, nos direitos afectados pelo incumprimento. Mas é inegável que há permissividade por parte das autoridades competentes quanto à circulação de peões nas ciclovias. Se calhar não faz sentido existirem ciclovias não partilhadas.
Há situações em que o ciclista mais valia abandonar a ciclovia para evitar estar constantemente a parar, a abrandar, a desviar-se, etc. Isto é ridículo quando a via onde circula é exclusiva para ele e os constragimentos à sua circulação vêm de utilizadores em incumprimento. Se quisermos comparar com o caso dos automóveis e dos ciclistas, pegando correctamente na sua analogia, era como se os automobilistas julgassem que seria melhor para eles circularem por outro lado quando, numa via interdita a ciclistas, estes estavam a usá-la de um modo que interfere no uso da via por parte dos primeiros.
A grande diferença é que se eu for circular de velocípede para uma autoestrada ou via de trânsito rápido dificilmente não serei abordado pelas autoridades competentes e sujeito-me a sanções. Ao passo que a maioria dos peões não tem motivos fortes para se sentir sujeita a sanções por usar ilegalmente uma ciclovia.
1) Não é contraditório, porque a posição primária e o limite esquerdo do lado direito da via de trânsito sobrepõem-se.
2) Mesmo que fosse contraditório, é mais importante manter a segurança das pessoas do que manter a legalidade dos actos. Como antes da lei mudar. E a lei não mudou o suficiente a este nível, o seu comentário prova bem isso. Ainda há trabalho a fazer.
Não faz sentido fiscalizar e autuar peões que circulam em ciclovias pois os peões já são os utilizadores mais prejudicados pelo status quo. Não têm espaços para estar, os espaços para circular – quando existem – são frequentemente inadequados, mal mantidos, e usurpados. Seria uma injustiça tremenda começar por mostrar tal zelo junto dos utentes já mais negligenciados e maltratados, quando são, em simultâneo, os que mais benefícios trazem à cidade.