Escola de Bicicleta

mobilidade & recreio

Os bons condutores só conduzem

Nota prévia: o objectivo da Escola de Bicicleta da Cenas a Pedal é, primariamente, criar bons condutores de bicicleta, mas também, e no processo, criar melhores condutores no geral, para benefício de todos. Este post será útil para todos os condutores, seja de que veículo for.

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Quando conduzir não beba.

Toda a gente tem este slogan na cabeça (embora muitos continuem sem o respeitar…).
Mas não basta. Hoje em dia, com rádio, vídeo, telemóveis, tablets e afins no automóvel precisamos de interiorizar isto:

Os bons condutores só conduzem.

Escrevo este texto a propósito desta campanha que encontrei há tempos na net:

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O COLO MATA

Sabemos o que estás a fazer aí em baixo. Enviar mesmo a mais curta SMS tira os teus olhos da estrada por 5 segundos – o suficiente para fazer uma vida inteira de estragos.

Mantém os teus olhos afastados do teu telemóvel.

Esta é muito suave, não mostra a brutalidade das consequências do que a maior parte das pessoas considera uma actividade inócua, como faz esta outra campanha, ou este testemunho real de uma rapariga de 20 anos que se envolveu num sinistro por se ter permitido distrair com o telemóvel, sofrendo sequelas graves.

É relativamente comum ver pessoas a usar o telemóvel enquanto conduzem um automóvel, seja em movimento, seja em situações tipo pára-arranca (congestionamentos, semáforos, etc). Antes era quase sempre a preparar ou a efectuar chamadas, mas hoje em dia é igualmente comum vê-las a usarem o telemóvel para outras funções, nomeadamente, enviar e receber SMS, navegar no Facebook, tirar fotos, etc.

Fazem-no porque têm a ilusão de que têm o controlo da situação e de que conseguem detectar mudanças no ambiente e reagir eficazmente às mesmas apesar de estarem a tentar realizar duas tarefas em simultâneo. Estão enganados e esta campanha da ONG Responsible Young Drivers (RYD) demonstra isto muito bem:

Foi dito a estes alunos que, para passarem no exame de condução, teriam que provar conseguir conduzir em segurança e enviar SMS ao mesmo tempo, uma “nova directiva governamental”. As câmaras ocultas mostram bem os resultados…

O efeito do uso do telemóvel na condução de um veículo

Ora, usar o telemóvel, seja para conversar ou para outra coisa qualquer, enquanto se conduz tem três problemas graves:

1. leva-nos a momentaneamente deixar de olhar para o que se passa à nossa frente e ao nosso redor (5 segundos ou mais)

A 80 Km/h, em 5 segundos a olhar para outro sítio que não para a frente, dá para atravessarmos (às cegas) um campo de futebol inteiro (111 m). A 50 Km/h percorremos 70 m sem ver, e 30 Km/h percorremos um campo de futsal (42 m). Ao longo desta distância, pode haver veículos a imobilizarem-se à nossa frente, peões ou animais a atravessarem a estrada, etc – e nós não estamos a olhar sequer.

Em 2011 (segundo esta fonte) 23 % das colisões automóveis nos EUA envolveram telemóveis. Enviar mensagens pelo telemóvel enquanto se conduz torna envolvermo-nos numa colisão um cenário 23 vezes mais provável. E é 6 vezes pior que conduzir bêbado.

2. aumenta a nossa carga cognitiva, o que aumenta a probabilidade de cometermos erros 

Carga cognitiva é a quantidade de informação que um humano tenta processar na memória de trabalho, a dado momento.

Limite cognitivo é o número máximo de pedaços de informação que uma pessoa consegue processar na memória de trabalho, a dado momento.

Pelos vistos, o limite cognitivo humano é muito baixo.

Para perceberem o efeito que a carga cognitiva tem na nossa capacidade de conduzir, sugiro que vejam pelo menos os minutos 20 a 26 deste (belíssimo) documentário:

Não é só o tempo de reacção que fica comprometido, mas também a capacidade de reacção, como mostra a experiência levada a cabo no documentário acima, por exemplo.

O que é que acontece quando aumentamos a nossa carga cognitiva, tentando desempenhar várias tarefas em simultâneo, e excedemos o nosso limite cognitivo? Temos um pior desempenho a todas as tarefas (mais erros, mais tempo), ou negligenciamos completamente algumas delas, não lhes conseguindo dedicar atenção suficiente.

Ver implica olhar e detectar, ou seja, não basta ter algo à nossa frente para o vermos, é preciso também processar mentalmente esse algo. Se não estivermos atentos o suficiente podemos sofrer de “inattentional blindness“, ou cegueira desatenciosa, numa tradução livre.

Cegueira desatenciosa é a falha em notar um objecto totalmente visível mas inesperado porque a atenção estava focada noutra tarefa, evento ou objecto.

Ou seja, é possível ver sem ver, se estivermos atentos a outra coisa qualquer:

3. obriga a tirar uma das mãos do guiador, ou a não o segurar da forma correcta

Isto faz-nos desviar a rota, frequentemente invadindo a via de trânsito contígua à esquerda, e condiciona a precisão da nossa reacção de tentar voltar para a direita.

Os condutores [americanos] jovens que enviam SMS enquanto conduzem passam 10 % do tempo fora da sua via de trânsito (segundo esta fonte). As consequências de tal negligência podem ser estas:

As nossas forças policiais de vez em quando fazem umas acções de fiscalização que incidem especificamente nesta infracção do uso de telemóvel a conduzir.

A GNR multou 22.419 condutores por usarem telemóvel durante a condução em 2014 […]

Contudo, não é suficiente, pois continua a ser uma prática disseminada, e perigosa.

Que diz o nosso Código da Estrada?

Artigo 11.º – Condução de veículos e animais

2 – Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança.

3 – O condutor de um veículo não pode pôr em perigo os utilizadores vulneráveis.

4 – Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de € 60 a € 300.

Ora, qualquer coisa que comprometa a nossa visão e/ou que comprometa a nossa capacidade de detectar e processar informação relevante ao conduzir, e reagir adequadamente em tempo útil, prejudica o exercício da condução com segurança. Exemplos:

  • enviar SMS’s
  • usar um telemóvel ou smartphone
  • comer e beber
  • conversar com passageiros
  • pentearmo-nos, maquilharmo-nos, etc
  • ler, incluindo mapas
  • usar um sistema da GPS
  • ver um vídeo
  • ajustar o rádio, leitor de CD ou MP3
  • fumar

Artigo 84.º – Proibição de utilização de certos aparelhos

1 – É proibida ao condutor, durante a marcha do veículo, a utilização ou o manuseamento de forma continuada de qualquer tipo de equipamento ou aparelho suscetível de prejudicar a condução, designadamente auscultadores sonoros e aparelhos radiotelefónicos.

2 – Excetuam-se do número anterior:

a) Os aparelhos dotados de um único auricular ou microfone com sistema de alta voz, cuja utilização não implique manuseamento continuado;

4 – Quem infringir o disposto no n.º 1 é sancionado com coima de € 120 a € 600.

Este artigo, que não pode contrariar o Art.º 11…, especifica alguns dos actos susceptíveis de prejudicar a condução, proibindo a utilização ou manuseamento prolongado de dispositivos que possam afectar negativamente a condução, apontando concretamente auscultadores e telemóveis. Contudo, abre logo uma excepção para estes se se usar apenas 1 auricular ou u sistema de alta-voz, ignorando totalmente o efeito muito mais importante da carga cognitiva, focando-se apenas na questão do controlo físico do carro, e da audição.

A lei está errada, peca por defeito. 

Artigo 145.º – Contraordenações graves

1 – No exercício da condução, consideram-se graves as seguintes contraordenações:

nn) A utilização, durante a marcha do veículo, de auscultadores sonoros e de aparelhos radiotelefónicos, salvo nas condições previstas no n.º 2 do artigo 84.º;

Artigo 147.º – Inibição de conduzir

1 – A sanção acessória aplicável aos condutores pela prática de contraordenações graves ou muito graves previstas no Código da Estrada e legislação complementar consiste na inibição de conduzir.

2 – A sanção de inibição de conduzir tem a duração mínima de um mês e máxima de um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável às contraordenações graves ou muito graves, respetivamente, e refere-se a todos os veículos a motor.

O que é que isto tem a ver comigo ao conduzir uma bicicleta?

Primeiro, a lei também se aplica aos condutores de velocípedes, a única diferença é na escala das coimas, que são reduzidas a metade:

Artigo 96.º – Remissão

As coimas previstas no presente Código são reduzidas para metade nos seus limites mínimo e máximo quando aplicáveis aos condutores de velocípedes, salvo quando se trate de coimas especificamente fixadas para estes condutores.

Esta redução reflecte o menor perigo associado à condução de uma bicicleta versus um veículo motorizado. As consequências dos nossos erros a conduzir uma bicicleta são substancialmente menores e menos graves que a conduzir um automóvel. Contudo, embora a severidade das consequências possa ser menor, a probabilidade de sinistro continua a existir (nomeadamente afectando outros “utilizadores vulneráveis”, como ciclistas e peões), daí que faça sentido a lei também se aplicar a estes condutores.

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Segundo, de bicicleta estamos mais vulneráveis às consequências da distracção durante a condução por parte de quem conduz veículos motorizados, porque 1) não temos uma carapaça de protecção contra impactos e 2) continuamos a ser, em muitas circunstâncias, elementos inesperados (porque as bicicletas são relativamente raras nas vias públicas).

Mas então, é demasiado perigoso andar de bicicleta!

Não, o risco existe, mas não num vácuo. É mais perigoso ter uma vida sedentária que andar de bicicleta, por exemplo.

Para um condutor competente, que conduza um veículo seguro, o risco de se envolver num sinistro é muito menor do que para um condutor que não tenha as ferramentas necessárias para praticar uma condução segura, ou que as tendo, não as use.

Investindo, por isso, em tornarmo-nos condutores competentes de veículos fiáveis e em boas condições de operação, a envolvermo-nos num sinistro, é mais provável que este seja causado por negligência grosseira de outro condutor: condução em estado intoxicado, sob a influência de substâncias psicotrópicas, cansado, sonolento, distraído. Ou seja, o nosso risco global é muito baixo, mas continua a existir, e a ameaça maior passa a ser esta. Para os outros condutores, as principais ameaças são coisas que um bom condutor evita automaticamente…

O que fazer para reduzir ainda mais esse risco?

1. Liderar pelo exemplo

Os exemplos, sejam bons ou maus, são muito poderosos. Há-que dar o melhor exemplo possível, há sempre muita gente a ver.

A conduzir, a nossa atenção tem que estar 100 % dedicada a essa tarefa.

2. Falar destas questões com toda a gente, sempre que se proporcionar

A cultura é mais importante do que a lei. Podemos ter leis espectaculares, mas se a cultura não as acompanha, serão ineficazes, pois as pessoas moldam a sua interpretação e a sua aplicação da lei às suas crenças.

Tem que haver pressão dos pares para não incorrer nestes comportamentos. Ser um mau condutor tem que ser mal visto na sociedade. Por isso temos que falar destas coisas, discuti-las, chamar os outros à atenção, educar, exigir a nossa segurança e a dos outros.

3. Exercer o nosso dever profissional e/ou cívico

As autoridades policiais não devem fechar os olhos a estes comportamentos, reforçando-os. Agirem pode salvar vidas.

Se somos passageiros num veículo devemos insistir com o condutor para uma condução segura para todos. É nossa responsabilidade acusar atitudes negligentes e pressionar para que sejam suspensas.

4. Reduzir a nossa exposição

Risco = probabilidade x severidade x exposição

Eu consigo reduzir o meu risco mexendo nestas 3 variáveis. Neste caso em concreto de condutores distraídos (ou comprometidos nas suas capacidades, ex.: álcool, sonolência, cansaço), há pouco que eu possa fazer para reduzir a severidade das consequências de uma colisão. Mas eu posso tentar reduzir a minha exposição. Por exemplo, evitando zonas e horários típicos de condutores intoxicados, ou horários onde é mais comum haver condutores em privação de sono e cansados, se eu tiver essa informação.

5. Reduzir a probabilidade de uma colisão

Para reduzir o risco a que me exponho, posso ainda adaptar a minha condução de forma a reduzir a probabilidade de me envolver numa colisão. Por exemplo, ajustando a minha posição na estrada ao aguardar num semáforo ou num STOP, deixando sempre margem para erros da parte dos outros condutores (ex.: estarem a olhar para mim não quer dizer que me tenham detectado – “cegueira desatenciosa”; o outro condutor ter um sinal de STOP não garante que ele vá ceder-me a passagem, pode vir distraído; se o comportamento do outro condutor é errático ou revela sinais de estar a tentar compensar por algo, dobrar os cuidados perto dele…).

 

Referências:

Não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti

É comum ver condutores de bicicleta a fazer às pessoas a pé o que se queixam que os condutores de automóveis lhes fazem a eles: razias, apitadelas, ultrapassagens perigosas “para lhes ensinar uma lição, etc. Fazem-no pelas mesmas razões, ignorância, negligência, sobranceria.

O risco a que expõem os peões é menor do que aquele que os condutores de automóveis os expõem a eles, claro, mas ainda assim não é, de todo, um risco desprezável. Há efectivamente pessoas atropeladas por condutores de bicicletas. Daí podem resultar lesões variadas, e até a morte. E o próprio condutor da bicicleta também arrisca magoar-se, claro (pelo que é o primeiro interessado em correr riscos desnecessários…).

Fonte: massacriticapt.net

Fonte: massacriticapt.net

Na nossa escola ensinamos várias coisas fundamentais, entre elas a avaliação e redução de riscos, a cortesia, e a empatia. Tratar os outros como gostaríamos de ser tratados.

Os peões e os ciclistas são os elementos mais desprezados nos nossos espaços públicos, e as políticas públicas que têm havido e a forma como são desenhadas as vias públicas têm aumentado a fricção entre ciclistas (que fogem das estradas acreditando, erroneamente, que estão mais seguros nos passeios e ciclovias) e peões. Não podemos tolerar tal coisa. Os condutores de bicicletas e os peões devem misturar-se o mínimo possível, só em situações excepcionais e bem desenhadas, para evitar conflitos e reduzir riscos.

Os peões estão hierarquicamente acima dos ciclistas (pela universalidade dessa condição, pela maior vulnerabilidade, e pela ausência de ameaça aos outros utentes), estes últimos têm a responsabilidade de não colocar os primeiros em risco, mesmo quando estes adoptam comportamentos perigosos ou mesmo ilegais (podem ler uma introdução ao conceito de Responsabilidade Objectiva aqui).

Fonte: Sorumbático

Fonte: Sorumbático

A pensar nisto, a MUBi publicou um conjunto de 7 regras para respeito para com os peões, e o Luís Escudeiro divulgou-os em forma de podcast na Rádio Estrada Viva.

 

 

«Aprender a conduzir bicicleta» – Rádio Estrada Viva

Já conhecem a Rádio Estrada Viva?

RÁDIO ESTRADA VIVA divulga conteúdos de segurança rodoviária, prevenção da sinistralidade e mobilidade sustentável. É uma web rádio acessível no site da Estrada Viva, mas que pode ser inserida noutras páginas web de associações, entidades, blogues, etc. […]

Fomos gentilmente convidados pelo Luís Escudeiro a participar com algumas rubricas dedicadas à condução de bicicleta. A primeira peça, aqui, faz a introdução à escola e ao tema da formação de condutores de bicicleta.