Escola de Bicicleta

mobilidade & recreio

Aulas de bicicleta para crianças e adultos com necessidades especiais

Há uma ONG nos EUA chamada iCan Shine que promove campos semanais para ajudar crianças e adultos com necessidades especiais a aprenderem a andar de bicicleta.

Apesar de haver soluções para permitir a pessoas com diversas condicionantes físicas, intelectuais e/ou motoras pedalarem, recorrendo a triciclos com variáveis níveis de adaptação, se for possível a pessoa conseguir aprender a dominar as 2 rodas, será sempre a melhor opção, pois salvaguarda um maior nível de inclusão, independência e autonomia e isso faz muita diferença. Bicicletas há em todo o lado, triciclos é mais difícil encontrar. Conseguir, por isso, dominar a bicicleta, é uma conquista fabulosa.

Trissomia 21, autismo, espinha bífida, paralisia cerebral, atrasos de desenvolvimento, défices cognitivos, obesidade, são exemplos de condições que afectam particularmente a capacidade de aprender com sucesso a andar de bicicleta pelos processos comuns. Prova disso é que se estima, segundo investigadores da Universidade do Michigan, que menos de 20 % das crianças com autismo e só até 10 % das crianças com Síndrome de Down chegam a aprender a andar de bicicleta. Contudo, juntando os elementos certos, o sucesso é alcançável em pouco tempo e sem grandes percalços.

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Fonte: Montgomery News

Os elementos certos são: ferramentas adequadas, instrutores capacitados e investidos e um ambiente de aprendizagem apropriado. Isto vale para crianças e adultos com ou sem necessidades especiais, claro. Simplesmente, no caso dos primeiros, esses 3 factores exigem um nível de especialização superior.

rollerbikesDescobri este programa há cerca de 7 anos, nas pesquisas que fazia (e faço) na área da formação em condução de bicicleta, ainda se chamava Loose the training wheels (“Larga as rodinhas”) – mudaram de nome em 2012 para reflectir a ampliação da sua missão para incluir outras actividades recreativas como natação, ginástica, etc. Perguntei-lhes nessa altura se desenvolviam programas na Europa, pois queria tentar promover um destes campos cá em Portugal. O programa expandiu muito mas continuam hoje, como antes, sem perspectivas de virem a actuar fora dos EUA e Canadá no médio prazo.

Mantenho, contudo, o sonho de um dia importar o programa para cá, e também de conhecer e trocar ideias com o criador do programa original, e inventor e fabricante das bicicletas especialmente adaptadas usadas nos ditos campos, Richard E. Klein, um professor de engenharia mecânica reformado que desenvolveu o método de ensino e as bicicletas que o suportam.

São as bicicletas altamente adaptadas (os rolos são o que salta logo à vista, mas não é só isso), e o processo de ensino que elas facilitam, que tornam possível depender apenas de voluntários e não de instrutores especializados para ajudar as crianças a aprender, e ainda assim conseguir uma taxa de sucesso de 80 % para 5 dias de aulas, 75 min por dia. Sendo que o sucesso é de 100 % se considerarmos que todas as crianças beneficiam da experiência, mesmo que não atinjam logo os resultados desejados.

ican shine camp

Fonte: The Patriot News

Todos os adultos e crianças tiram os mesmos benefícios de aprender a andar de bicicleta de forma a poder integrá-las nas suas vidas:

  • aumento da auto-estima e auto-confiança
  • oportunidades de inclusão
  • mudança positiva nas dinâmicas familiares
  • melhoria da qualidade de vida atráves de actividades recreativas
  • transporte independente
  • melhoria da condição física

Mas isto tem uma importância particular e um impacto amplificado no caso de crianças e adultos com necessidades especiais.ican shine camp

O que fazemos na nossa própria escola segue os mesmos princípios base, em termos de métodos e ferramentas. Esperamos um dia conseguir ter capacidade financeira para investir em programas adaptados para servir também esta população com necessidades especiais de forma consistente (até hoje apenas tivémos experiências pontuais, embora bem sucedidas, com pessoas com algum tipo de condicionante, como artrite reumatóide, ligeira paralisia cerebral, fibromialgia, obesidade, próteses, etc).

Cá em Portugal, apenas sei de uma pessoa que desenvolveu trabalho nesta área, e de louvar, o Rui Pratas, mas em regime de voluntariado, com todas as limitações que isso implicava (e o Rui entretanto emigrou para o Reino Unido). O nosso objectivo é poder vir a oferecer este serviço de forma profissional e especializada, como fazemos para os alunos sem necessidades especiais.

É como andar de bicicleta

É como andar de bicicleta“, diz-se de algo que é fácil e que nunca se esquece.

Em 2012, em Viena, visitámos o Argus Bike Festival no âmbito do programa do encontro do projecto VOCA nessa cidade, em representação da MUBi. Uma das actividades disponíveis era a experimentação de uma série de invenções e adaptações velocipédicas, entre elas uma bicicleta com a direcção invertida (a roda dianteira vira para o lado oposto para o qual viramos o guiador), que tivémos a oportunidade de experimentar:

Ora, conduzir esta bicicleta revelou-se uma missão impossível nos poucos minutos em que tentámos. E agora podemos consolar-nos pois o Destin Sandlin levou a experiência às últimas consequências.

Ele, que aprendeu a andar de bicicleta [normal] aos 6 anos de idade, 25 anos depois levou 8 meses, treinando cerca de 5 min todos os dias, a conseguir conduzir uma bicicleta destas. Ou seja, precisou de cerca de 20 horas de treino, espalhadas ao longo de 8 meses, para simplesmente conseguir equilibrar-se nesta bicicleta, algo que um adulto médio consegue, numa bicicleta normal, aprender em apenas 2 horas se estiver suficientemente disposto a cair (atenção, estamos a falar apenas de equilíbrio básico a pedalar, e não do que é preciso para efectivamente saber andar de bicicleta como deve ser).

Esta experiência suscitou-me algumas questões que ficam por responder:

  1. é efectiva e objectivamente mais difícil aprender a andar nesta bicicleta do que numa normal? É menos contra-intuitiva?
  2. seria mais fácil aprender se a bicicleta invertida tivesse travões manuais (a que experimentámos em Viena também não tinha)?
  3. seria mais fácil / rápido aprender se o Destin não soubesse já andar de bicicleta normal?
  4. é possível chegar a um ponto onde se anda de forma competente e automatizada em ambas as bicicletas, saltando de uma para a outra sem soluços?

O pontos 2 e 3 interessam-me particularmente pelas ilações aplicáveis nas aulas de condução que dou na escola.

Neuroplasticidade

A capacidade do cérebro sofrer alterações sinápticas faz com que os circuitos neuronais sejam capazes de se transformarem e é esta característica única que está na base da aprendizagem e da memória. Este é um processo constante e contínuo visto que está impreterivelmente ligado a uma adaptação ao ambiente circundante e às novas experiências que vão surgindo.

Fonte: Wikipedia

your brain on a bikeO filho do Destin, de 5 anos de idade, andava de bicicleta (normal) há 3 anos, mais de metade da vida dele, e bastaram 2 semanas de treinos para conseguir andar na bicicleta invertida. Ou seja, 32 semanas para o pai, 2 semanas para o filho. Isto é um reflexo da maior neuroplasticidade das crianças – a arquitectura cerebral delas altera-se mais rápida e facilmente durante as suas aprendizagens.

Por outro lado, o que o cérebro do Destin tem a menos em plasticidade poderá ter a mais em estabilidade dos circuitos neuronais, que é o tradeoff que acontece à medida que crescemos e envelhecemos. Isso significa que não só é mais lento a aprender algo novo como é mais lento a “desaprender” algo antigo – “nunca esquecemos como se anda de bicicleta“.

Memória muscular

A aprendizagem motora utiliza memória não-declarativa (adquirida pela prática). Assim para aprender uma actividade motora é necessário treinar inúmeras vezes e de diversas maneiras determinada acção para que esta se fixe. Contudo, quando finalmente se fixa, nomeadamente na idade adulta, já não se esquece, fica na nossa “memória muscular”.

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Mas se aprendemos a andar de bicicleta quando tínhamos 6 ou 8 anos, andámos umas vezes, e depois nunca mais até acordarmos um dia aos 30, 40 ou 50 anos e resolvermos tentar de novo, podemos descobrir que afinal já não sabemos. Podemos sentir que “desaprendemos”. Pode ser apenas que a aprendizagem não ficou consolidada na altura, ou que aquilo que temos na nossa memória muscular está desacertada com a nossa nova realidade corporal: estamos mais altos, mais pesados, etc. Seja como for, reaprender é sempre mais rápido que aprender.

Conclusões

Esta experiência do Destin demonstra algumas verdades importantes que já tínhamos tido oportunidade de observar:

  • em média, aprender a andar de bicicleta (não a conduzi-la, atenção) é mais fácil e rápido para uma criança do que para um adulto
  • um adulto pode facilmente aprender a andar de bicicleta, até uma com direcção invertida :-), basta que invista o tempo necessário
  • desaprender algo é possível, sim, mas é difícil e moroso, e quanto mais consolidada estiver essa aprendizagem que pretendemos desfazer para construir outra, pior – por isso é que é muito mais difícil e leva muito mais tempo a ensinar crianças a andar de bicicleta quando estas andaram com rodinhas de apoio do que quando simplesmente nunca andaram de bicicleta – não ponham os vossos filhos a andar de bicicleta com rodinhas, por favor; dependendo da idade e da criança, invistam numa bicicleta de aprendizagem de boa qualidade e/ou invistam em aulas (bastam 4 a 8 horas para os miúdos ficarem quase uns pros), ou preparem-se adequadamente para a ensinarem (bem) vocês mesmos (vendo isto, por exemplo)

Quando aprendemos uma actividade motora nova, estamos literalmente a alterar o nosso cérebro, estamos a criar novos caminhos neuronais, novas ligações – claro que vai custar! É preciso insistir nos exercícios, praticar regularmente e dormir bem entre aulas. Mas vale a pena, aprender uma nova actividade motora mantém a saúde do nosso cérebro, e depois realizar essa mesma actividade física também beneficia o cérebro, é só vantagens. 🙂